Livros lado a lado

O Passado, o Presente e o Futuro do Livro


por Chico Homem de Mello
Artigo Publicado em “Os Desafios do Designer”
Editora Rosari

O destino do livro impresso está na ordem do dia. Todas as questões em pauta – se ele vai ou não vai desaparecer, qual a natureza das mudanças em curso, qual a futura aparência dos e-books – passam pelo território do design. Temos o privilégio (e também a angústia) de sermos a geração responsável pela passagem de um sistema a outro, e a magnitude dos desafios colocados é de assustar qualquer um.

O que se fala dos e-books

Há muitas vozes criticando os e-books. Um dos pontos negativos apontados é o fato de neles não haver o calor presente no contato com um livro impresso. Sem querer macular a aura de um belo volume encadernado, é preciso reconhecer que usar esse argumento para desqualificar o e-book é confundir as coisas.

Comparemos com o mobiliário. A madeira é um material com um calor análogo ao do livro – afinal, madeira e papel pertencem à mesma família. A atmosfera de uma mesa de madeira deriva em parte do próprio material do qual ela é feita. No entanto, isso não nos leva à desqualificação das mesas feitas em material sintético. Móveis de madeira vão continuar existindo, com suas características peculiares, podendo inclusive representar o mais sofisticado design contemporâneo; no entanto, móveis de material sintético vieram para ficar. Cada um fala a uma determinada sensibilidade e é usado para produzir um determinado efeito.

Criticar os e-books por serem frios é cair no engano de declarar absoluta uma certa sensibilidade historicamente construída. Fala-se que e-books são trambolhos, pois não podemos carregá-los debaixo do braço, levá-los no ônibus ou colocá-los no colo para ler na cama antes de dormir. Verdade provisória. Só para se ter uma ideia do futuro próximo, em abril de 2001 foi feita a apresentação em Nova York de uma “folha de papel” digitalizada – na verdade, uma lâmina de poucos milímetros de espessura., feita em material flexível e com as propriedades de uma tela, um produto em desenvolvimento pelo Media Lab, do MIT, nos EUA.

Por essa amostra podemos adivinhar que esses atuais trambolhos poderão em breve virar objetos com uma aparência bem diferente da exibida hoje. Podemos não saber exatamente qual vai ser essa cara, mas não parece haver problemas intransponíveis nesse terreno.

Fala-se que os textos são lavados, não têm tratamento visual. Em outras palavras, que uma grande parcela dos textos em circulação na mídia eletrônica não tem design. Outra verdade provisória. No atual estágio tecnológico, ainda há muitas situações nas quais não é possível dar aos textos o tratamento adequado, mas tudo indica que isso mudará rapidamente. O sentido geral das pesquisas em andamento é tornar possível a incorporação crescente de recursos visuais. É forçoso lembrar que, em vários aspectos, as mídias eletrônicas oferecerão um leque bem mais amplo de recursos quando comparadas ao livro convencional.

O que não se fala dos e-books

Os reais problemas do e-books estão em outra esfera. Eles residem na natureza do suporte, ou seja, na tal passagem revolucionária de um suporte a outro apontada por Chartier. Infelizmente, nessa esfera o cenário é bem mais preocupante.

Pensemos primeiro no livro impresso. Há um certo grau de desenvolvimento tecnológico necessário à sua produção, mas sua leitura é imediata, e sua guarda exige relativamente pouca tecnologia. Quais as condições necessárias para lermos um livro? Luz, basicamente, natural ou artificial. Do ponto de vista da guarda, são necessários certos cuidados no controle de umidade e temperatura dos ambientes, mas nada que implique obstáculos de grande monta. Temos livros em papel feitos há muitos e muitos séculos em bom estado de conservação, e acessíveis à consulta sem nenhuma dificuldade. Cada um de nós tem livros comprados há várias décadas – ou há uma década, dependendo da idade do designer —, e o esforço para consultá-los limita-se a um esticar de braço até a prateleira.

Pensemos agora ao e-book. O panorama muda por completo. Tanto a leitura quanto a guarda exigem artefatos e tecnologia bem específicos, e a coisa fica ainda mais delicada quando consideramos a leitura após um período de guarda: até quando esse aparato tecnológico necessário para a leitura vai estar disponível? São questões estreitamente relacionadas ao cotidiano profissional do designer. O arquivamento dos nossos trabalhos é todo eletrônico. No entanto – atenção, designers e não designers, esta pergunta ainda vai lhes causar calafrios —, por acaso sabemos quantos anos vão durar esses arquivos? Há montanhas de documentos gerados há menos de uma década aos quais não temos mais acesso. Eles não podem ser abertos, em geral por duas razões: em primeiro lugar, as mídias nas quais estão armazenados não são mais acessíveis (alguém se lembra das fitas Dat ou dos Sy-Quest?; e os computadores da Apple, que a partir do iMac sequer têm drive de disquete?); em segundo lugar, as versões atuais dos programas não abrem arquivos feitos em versões muito anteriores desses mesmos programas.

Isso é vida real: com frequência assustadora, não temos mais como recuperar trabalhos feitos há cinco anos! (Um dos mandamentos do bom designer reza que, anualmente, devemos atualizar todos os arquivos nas duas frentes citadas acima. A primeira diz respeito à mídia de armazenagem: devemos passar todos os documentos do suporte mais antigo para o mais atual: o ano passado era Zip, este ano é CD, no próximo ano é DVD. A segunda diz respeito ao software: devemos abrir e ressalvar cada documento pela versão mais recente do programa. No entanto, sejamos sinceros, quantos fazem isso?)

Voltemos à leitura, guarda e leitura pós-guarda do e-book. Que tal comprarmos um livro e, depois de cinco anos, não poder mais lê-lo, simplesmente porque o equipamento de leitura não existe mais? Muita gente já passou pela desagradável experiência de se desfazer de seus LPs (outros ainda os guardam em caixas, sem saber ao certo o motivo). Tudo indica não haver outra saída, a ordem do mercado é jogar tudo fora, e recomprar em CD. Para a indústria, esse processo é uma festa. E as nossas fitas de vídeo, vamos jogá-las todas fora, trocando-as pelos DVDs? Estamos condenados a repetir esse mesmo jogo com os e-books? A cada novo salto tecnológico – ou seja, anualmente – joga-se tudo fora e compra-se tudo outra vez? Parece inevitável, mas . . . e quanto ao que não estiver disponível para ser comprado novamente? Quem ganha e quem perde esse jogo?

Esse é o problema, por exemplo, com a guarda de imagens. Fala-se em digitalização como se fosse uma panaceia contra a umidade e mofo dos depósitos. Mas, alguém pode dizer com segurança quanto dura um arquivo digital? Arquivos em papel – também chamados de livros – duram 300 ou 400 anos sem grandes sofisticações de guarda. Dá para acreditar na disponibilidade de tecnologia para abrir um CD no ano 2403? E, se houver, a imagem ainda estará lá dentro? Nessa discussão toda de passado, presente e futuro de livros impressos, e-books e arquivos eletrônicos, os designers são uma voz indispensável por uma razão muito simples: essas são questões de design.

Uma observação aguda sobre o bug do milênio

Quando estávamos às vésperas do bug, em 1999, Umberto Eco escreveu um artigo no qual constatava um fato alarmante a respeito do trabalho dos cientistas envolvidos com a pesquisa em informática durante as décadas de 1970 e 1980 – vários dos mais brilhantes cientistas do mundo, na época. Por um lado, esses pesquisadores foram capazes de produzir um conhecimento que mudou a face do planeta em poucos anos.

Ao mesmo tempo, foram incapazes de avaliar as consequências do seu trabalho em uma escala de 20 anos. Não conseguiram perceber que o conhecimento que produziam poderia acarretar problemas colossais, não um século depois, em virtude de causas imprevisíveis, mas 20 anos depois, em virtude de uma razão tão prosaica quanto o virar do calendário! Estavam tão absortos e fascinados com suas conquistas imediatas que não tiveram a capacidade de, ao menos por um momento, aprumar o corpo, levantar a cabeça e perscrutar o horizonte.

Publicado originalmente no site Semente Editorial.

 

  1. Excelente. – Para os que, como eu, seguem pelos caminhos do E-Book, que estão envolvidos “até o pescoço” com isso, o assunto abordado aqui por você Stella, e como o faz, há de provocar belas, oportunas e longas discussões.
    São questões que precisam estar às claras, e serem discutidas por todos os seguimentos humanos, de forma consciente e inteligente, enquanto “a paz reina”. Mas do jeito que a coisa vai, exemplos anteriores provam isso, só iremos olhar e tomarmos atitudes sérias sobre o assunto, daqui a 10, 20 ou mais anos. – O sinal de alerta foi acionado! – Parabéns pela postagem!

  2. Oi Stella, bom sobre a questão de software, isso já é algo pensado e por isso existem padrões internacionais que estão sendo adotados, o odt por exemplo segue sempre o preceito de que toda a novo software deve ser capaz de abrir um documento odt não importa quando foi feito.
    Sobre guarda, aí também evoluímos com o conceito de nuvem, não precisamos mudar de disquete pra cd se tudo está na nuvem, os servidores se encarregam de criar backups regulares e mudar os dispositivos de arquivamento para mais recentes, aí os problemas passam a ser outros como privacidade e segurança, mas aí já começo a me desviar do assunto.
    Agora uma crítica a fonte para escrever comentários é muito clara, dificulta bastante.

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