Confiram um ótimo artigo de André Borges Lopes, da Bytes & Types. O artigo foi publicado no blog Brasilianas.
Idéias novas atravessam três etapas:
1) Isso não funciona;
2) Pode ser que funcione, mas não vale a pena;
3) Eu sempre soube que era uma excelente idéia!Arthur C. Clarke
Em julho de 2001, fui convidado pela Associação Brasileira de Tecnologia Gráfica para ministrar um workshop sobre “fotografia digital”. Na época, essa nova tecnologia ainda engatinhava, e era vista com profunda desconfiança pelos fotógrafos e produtores gráficos. Câmeras digitais profissionais eram caríssimas e precárias: as então recém-lançadas Nikon D1 custavam mais de US$ 5.000 (só o corpo, nos EUA) e ofereciam de resolução singelos 2,6 megapixels. Mesmo aqui em São Paulo, pouquíssimos laboratórios recebiam arquivos digitais, e pediam entre 24 a 48 horas para entregar as fotos em papel.
Nesse workshop, deixei claro que a qualidade das fotos digitais da época era ainda muito inferior à das fotos convencionais, desde que adequadamente escaneadas. Apesar disso – e me arriscando no pantanoso terreno da futurologia – eu não tinha dúvidas de que a adesão dos fotógrafos ao digital no segmento profissional (em especial no fotojornalismo) seria extremamente rápida. As vantagens oferecidas pela facilidade e agilidade do manuseio dos arquivos eletrônicos, comparadas aos transtornos da revelação química e do escaneamento, davam aos fotojornalistas digitais um diferencial competitivo que compensava largamente todas as deficiências de qualidade. Além disso, era visível que as câmeras digitais estavam evoluindo em velocidade assustadora.
Por outro lado, eu não acreditava numa entrada rápida das câmeras digitais na fotografia amadora, nas fotos do dia-a-dia, tipo “viagem de férias” e “aniversário das crianças”. Para o usuário amador, havia as dificuldades em transferir, selecionar e editar os arquivos num computador, gravar um CD-R para levar ao laboratório, aguardar os longos prazos de entrega. Um inferno perto da praticidade dos quiosques tipo “one-hour photo”, nos quais deixávamos os rolinhos de filme 35mm e voltávamos alguns minutos depois para pegar as ampliações já prontas para serem colocadas nos tradicionais albuns de fotos – os quais seriam depois mostrados e compartilhados entre amigos e parentes.
Se minha previsão quanto ao fotojornalismo se revelou acertada, a segunda foi um fiasco. Cinco anos depois do workshop, câmeras de filme já eram franca minoria nas festinhas de crianças e, de lá para cá, simplesmente desapareceram. O surgimento dos sites de relacionamento social na internet – Orkut, Facebook e congêneres – e facilidade de visualizar fotos nas telinhas LCD dos celulares reduziram a uma fração o mercado da ampliação fotográfica em papel. Hoje, milhões de “albuns virtuais” de fotografias são compartilhados diariamente na rede mundial. Na última feira Photo Image Brazil – realizada no mês de agosto em São Paulo – já não se encontrava uma única câmera analógica nos estandes dos grandes fabricantes.
Descontado o meu erro de previsão, posso dizer que essa revolução ultra-rápida da fotografia digital não chegou a ser exatamente uma surpresa para mim. Na época dessa palestra em 2001 eu já havia vivenciado pelo menos três eventos semelhantes. O primeiro havia sido a substituição das filmadoras domésticas Super-8 pela fitas de vídeo VHS, no início dos anos 1980 – em que pese o fato de que quase todos os profissionais de imagem reclamassem da precaria qualidade de gravação dos primeiros vídeo-cassetes. A segunda, alguns anos depois, havia sido a derrocada dos grandes e charmosos LPs de vinil pelas insonsas caixinhas de CD, mesmo enfrentado forte oposição dos amantes do design gráfico e dos especialistas em música, que sempre reclamaram do “som quadrado” dos arquivos digitais de áudio.
Os filmes Super-8 foram rapidamente substituidos pelos vídeos VHS, apesar de terem qualidade nitidamente superior
Na terceira revolução eu não havia sido apenas testemunha: fui parceiro e miltante. Trata-se da substituição na indústria gráfica dos sistemas tradicionais de pré-impressão pelo “Desktop Publishing” (DTP). O conceito de DTP (Editoração Eletrônica, em português) havia surgido em 1985 – quando foi possível reunir a interface gráfica dos Macintosh, a linguagem de impressão PostScript, as fontes tipográficas digitais, as impressoras de imagem a laser e os primeiros aplicativos de layout de página (mais detalhes no box abaixo). No final de 1995, pouco mais de dez anos após esses lançamentos pioneiros, pude desenvolver com alguns entusiastas do DTP uma “apresentação de conceito” em parceria pelo estúdio Comdesenho (do qual eu era sócio), pelo birô Paper Express e pela gráfica Camargo Soares: um bonito calendário de parede da Chapada Diamantina totalmente produzido em sistemas de editoração eletrônica, do escaneamento das imagens aos fotolitos limpos.
Essa revolução do DTP só agora está sendo concluída, no momento em que consolida-se a hegemonia dos sistemas Computer-to-Plate (gravação direta dos arquivos nas matrizes de impressão, sem uso de fotolito) e a completa transferência da pré-impressão para dentro das gráficas. Mas em 1995 já estava evidente que não precisávamos mais das grandes empresas de fotocomposição, paste-up, escaneamento, fotolito e provas – que por décadas haviam dominado o mercado de “prepress” em todo o mundo.
Vistos em retrospecto, esses primeiros dez anos do DTP passaram como num sopro. Mas não faltaram naquela época as legiões de céticos que duvidavam que aqueles “computadorzinhos ridículos de US$ 10 mil” iriam substituir os milhões de dólares então investidos nas grandes estações de fotocomposição, escaneamento e tratamento de imagem. Ou que iriam desempregar os milhares de profissionais de paste-up, retoque e montagem que trabalhavam nas empresas do setor. O tsunami do DTP pegou todos eles no contrapé. Tradicionais fabricantes de equipamentos como Mergenthaler, Monotype e Compugraphic – que haviam sobrevivido à substituição dos linotipos pela composição a frio duas décadas antes – não resistiram à nova mudança: desapareceram ou tornaram-se irrelevantes, para a sorte da Linotype, ITC, Aldus, Adobe, Quark, Corel e muitos outros que investiram nas novas tecnologias.
Em resumo, na virada do milênio em 2001 já não faltavam alertas a nos preparar para o que ainda vinha pela frente. Mas o fato é que muita gente preferira não ouví-los. Há cerca de dez anos, lembro-me de escutar da boca de um competente jornalista – então trabalhando numa das maiores revistas de informática do Brasil – que a distribuição de música via arquivos digitais estava condenada ao insucesso: havia sido estigmatizada como “coisa de gente pobre”, relegada aos office-boys e seus toscos aparelhos MP3 Players. Um ano depois dessa conversa, Steve Jobs nos apresentou seus iPods e iTunes, revolucionando não apenas a maneira que nós ouvimos música, mas também todo um mercado então dominado pelas grandes gravadoras.
O curioso é que eu passei boa parte da minha infância lendo Júlio Verne e invejando as pessoas que viveram nos final do século XIX, quando novas idéias e invenções surgiam a cada dia para revolucionar o mundo. Descobri, já “coroa”, que não tinha motivos para inveja: nossa geração vive tempos infinitamente mais revolucionários e a cada dia somos apresentados a novos produtos, idéias e conceitos. Entretanto, apenas uma fração dessas novidades é tocada pelo “beijo do tempo”: essa capacidade mágica e imponderável de mudar o mundo. Ou, como no slogan atribuido a Jobs, “to make a dent in the universe”.
Eu me recordo do pressentimento de estar diante desse tipo de coisa em 1987. Eu já iniciava meu trabalho na área editorial e gráfica quando um amigo da faculdade me mostrou pela primeira vez um Mac IIx diagramando páginas numa versão pioneira do software QuarkXPress. Lembro-me de ver o aplicativofuncionando e pensar “Danou-se, o mundo vai desbar à nossa volta”. Senti o mesmo pela segunda vez em 1998, quando outro amigo me pediu para postar na sua “página pessoal” na internet (nem se falava ainda em “blog”) um texto sobre o uso de maconha que eu havia escrito para uma revista de universitários: poucos dias depois, um marinheiro porto-riquenho servindo em Guam, no Oceano Pacífico, entrou em contato comigo perguntando se eu podia providenciar uma versão em inglês para republicação.
A sensação também estava comigo em 1994, quando vi em ação uma impressora digital E-Print 1000, primeira geração das hoje consagradas HP Indigo. E repetiu-se na feira Drupa de 2008, ao sermos apresentados às novas inkjet industriais coloridas de alta produtividade, rotativas que produzem impressos digitais de baixo custo em uma velocidade assustadora. Para mim, está evidente que o ciclo das matrizes de tipos móveis, inaugurado por Gutemberg e seus contemporâneos no século XV, começa a se esgotar rapidamente – dando lugar a uma nova forma de pensar a transmissão de informações que ainda usa papel pintado como suporte.
Em agosto desse ano, topei novamente com essa sensação de assombro: um amigo de Fortaleza postou no Facebook a foto de um outdoor onde se lia: Tablet substitui livros. Trata-se de propaganda um colégio cearense anunciando o projeto “Sistema Ari de Sá de Ensino Digital”: a partir de 2012, os alunos do Ensino Médio poderão ter os livros didáticos e conteúdos pedagógicos, produzidos pelo SAS oferecidos em dispositivos digitais de leitura, os famosos “tablets” (no caso, iPads da Apple). Sobre o assunto, há também um vídeo promocional no You Tube: http://youtu.be/v2xeHMWHy0k.
Nesse caso, o assombro não se deveu ao inesperado: todos sabemos que em países do primeiro mundo esse processo já está em andamento. Escolas particulares de elite aqui em São Paulo também começam a incluir alguns livros digitais no cardápio dos seus alunos. O assombro se dá pela absurda proximidade dessa idéia de “substituição”. Não é mais na distante Coréia do Sul, é logo ali em Fortaleza; não é daqui a dez anos, é dentro de poucos meses. E o projeto do Ari de Sá traz um conceito importante: não são “livros digitais”, trata-se de um “sistema de ensino” que foi convertido para iPad. “Sistema de ensino digital”: anote esse conceito, ele será importante. Falarei mais dele num próximo artigo.
Para completar os agouros de agosto, no último dia 22 a RISI publicou um estudo intitulado “O impacto da mídia em tablets nos mercados de papéis editoriais” (http://www.risiinfo.com/risi-store/do
/product/detail/impact-of-media-tablets-on-publication-paper-marke…), avaliando qual o efeito do crescimento exponencial da venda desses dispositivos de leitura no mercado papeleiro. Num horizonte próximo, o estudo conclui que “ainda que os tablets possam causar um efeito positivo nos hábitos de leitura, estima-se que o uso de papel em revistas irá cair pelo menos 20% nos próximos 5 anos”.
Não é preciso ser do ramo para concluir que impacto igual ou maior recairá sobre o segmento da indústria gráfica dedicado a atender esse mercado. Estamos falando de nada menos que algumas dezenas de grandes empresas, com milhões de dólares investidos em sofisticadas impressoras offset planas e rotativas, prestes a enfrentar os fantasmas de uma crescente capacidade ociosa e de uma concorrência predatória brutal pelo que restar do mercado.
“O livro em papel nunca vai acabar”, “a informação impressa transmite mais confiabilidade”, “os arquivos digitais são voláteis, o que está no papel é perene” – são algumas colocações que nos acostumamos a ouvir hoje da boca dos que se recusam a enxergar a tempestade à sua frente. Todos esses argumentos são verdadeiros, mas não se esqueçam que também era verdade que o Super 8 tinha mais qualidade que os antigos VHS, que o som de um bom LP de vinil era melhor que o dos CDs, que as ligações de celular tem menos qualidade e custam muito mais caro que as de um telefone fixo. Por acaso alguma dessas verdades teve o poder de segurar o tsunami das mudanças?Para mim é evidente que o livro impresso não vai acabar, ao menos não dentro do nosso horizonte de previsão.
Também me parece óbvio que, por décadas, haverá leitores preferindo receber seus jornais e revistas em papel. Da mesma forma, dificilmente a educação dos seres humanos poderá prescindir tão cedo dos livros e demais publicações impressas. Mas é preciso entender que não é disso que estamos falando.Sejamos conservadores e vamos admitir que, num prazo de cinco anos, algo como 30% do mercado de livros comerciais, 20% do mercado das grandes revistas e 10% do mercado de livros didáticos migre para os leitores digitais. Dá para compreender o tamanho da confusão na qual a indústria gráfica estará metida nessa década que se inicia? Adotar a tática de avestruz e fazer de conta que nada vai acontecer é, sem dúvida, a pior alternativa.
Desde a primeira revolução industrial, a História está cheia de exemplos de empresas grandes e poderosas que desapareceram em poucas décadas por não conseguirem prever e se adaptar aos novos tempos.Por outro lado, também não é caso para pânico e desespero. Recorro a uma figura de linguagem do último (e na minha opinião o melhor) discurso do reverendo Martin Luther King, o célebre I’ve Been to the Mountaintop:”Somente quando está muito escuro é que você consegue ver as estrelas”Mas isso discutiremos no nosso próximo texto.
Parabéns.
Um dos melhores artigos sobre o assunto, até o momento.
Já começam a surgir iniciativas nessa área, mas estranhamente não partem das editoras.
Essa é minha: http://youtu.be/xXT1rnsaCZY
Abraço a todos.
Ótima iniciativa, Marcos!
Esta publicação é de imenso valor, nos faz refletir o quanto as mudanças são rápidas e o quanto não devemos ter pré-jugalmentos e nos atermos ao que temos no momento, afinal o tempo e as inovações requerem agilidade e desprendimento para novos conceitos e ideias.
Excelente paralelo entre fotografia e livro digital! Além disso, sobre as inevitáveis e estonteantes crises e mudanças da ciência e a da tecnologia. A mobilidade é o caminho de menor resistência, daí o sucesso dos custosos e deficientes serviços de telefonia móvel. Além disso, devo acrescentar que
(Aldous Huxley, Os Demônios de Loudun).
Continuamos transformando, adaptando, valorando (ética, financeira, religiosa e emocionalmente), dividindo, multiplicando, subtraindo, adicionando e potencializando e, ademais, “logaritmizando” conteúdo.