Simone Paulino fechava a Casa Paratodos, que abrigara eventos de editoras independentes durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no ano passado, quando foi interpelada por uma mulher desesperada em busca do livro A mulher de pés descalços, da ruandesa Scholastique Mukasonga. Não sobrara nenhum exemplar na Travessa, a livraria oficial da Flip. Os dois romances de Mukasonga — A mulher de pés descalços e Nossa Senhora do Nilo, ambos publicados pela editora Nós — foram, respectivamente, o segundo e o quinto livros mais vendidos daquela Flip. Paulino fundou a Nós em 2015 e se especializou em edições caprichadas de ficção nacional e estrangeira com tiragens médias de 1.000 exemplares. Aproveitou a vinda de Mukasonga à Flip e imprimiu 4 mil exemplares de cada um dos romances. Levou 200 — 100 de cada — para Paraty. Vendeu todos. O único exemplar que restara era o dela, escondido em sua mochila, mas até esse ela vendeu, ali na rua, para a mulher que a emboscara ao fim da festa.
“Na semana posterior à Flip, todas as livrarias começaram a me pedir os livros da Scholastique”, contou Paulino a ÉPOCA. “Grandes redes, como a Saraiva, que nunca tinham olhado para mim, me pediram os livros dela, porque era uma autora da Flip.” A Nós já publicou 35 títulos e, desde a Flip passada, não dá mais prejuízo (mas ainda não dá lucro) — apesar da crise das grandes livrarias, que têm atrasado os pagamentos às editoras. “Antes, a gente vendia pouquinho, mas o que vendia recebia”, disse Paulino. “Agora, começamos a vender mais, mas sem receber ou receber com muito atraso, o que bagunçou as coisas.”
Paulino toca a editora com a ajuda de uma única funcionária fixa. Neste ano, ela volta à Flip com 600 exemplares — 200 de cada — dos romances Adua e Minha casa é onde estou, e do livro de ensaios Caminhando contra o vento, sobre Caetano Veloso, todos de Igiaba Scego, escritora italiana filha de somalis, convidada da festa. As tiragens são de 4 mil exemplares para cada romance e de 8 mil para o livro de ensaios, uma coedição da Nós com a Buzz Editora. A Casa Paratodos — rebatizada Paratodxs — também volta à Flip e reunirá as editoras Nós, Edith, Demônio Negro, Relicário, Dublinense, Buzz, Kapulana e Polén, além da TAG – Experiências Literárias, um exitoso clube do livro por assinatura. Todas são editoras independentes. Quase um terço dos 33 convidados da Flip é publicado por editoras independentes.
Segundos dados compilados pela consultoria Nielsen a pedido de ÉPOCA, as editoras independentes cresceram 12,97% em volume e 4,58% em faturamento no acumulado das 28 semanas de 2018 em comparação ao mesmo período de 2017. O vigor das editoras independentes parece um versinho alegre perdido no meio de um longo conto de terror. O mercado editorial encolheu 21% desde 2006. Segundo pesquisa da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) divulgada em maio, as perdas de 2006 a 2017 somam R$ 1,4 bilhão. Dados do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) mostram que as três grandes redes de livrarias — Saraiva, Fnac e Cultura — têm quase 1.300 títulos protestados, que somam R$ 38 milhões de pagamentos em atraso. A Saraiva tem a maior dívida: são 312 protestos, que chegam a R$ 28 milhões. A Fnac tem 310 títulos protestados, que representam débito de R$ 8 milhões. A Cultura soma 634 títulos protestados, num total de R$ 2 milhões. A Saraiva informou que está em negociação com os fornecedores. A Cultura e Fnac não quiseram falar sobre o assunto.
As editoras de porte enxuto e com mais tempo de mercado são as que sentem mais a crise das livrarias. Com até 50% do faturamento vindo das grandes redes varejistas, essas empresas se veem numa sinuca de bico: se processam a Saraiva e a Cultura, fecham a porta do principal destino de seus produtos, mas, se continuam fornecendo material consignado sem receber, a conta mensal não fecha. O presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel) e sócio da editora Sextante, Marcos da Veiga Pereira, resiste a falar no assunto. Ele afirmou a ÉPOCA que a situação do mercado de livros é preocupante, mas ponderou que a crise ocorre por causa da “maior recessão da história recente do Brasil”. Embora tenha admitido que a situação das três principais livrarias do país “é ainda mais complicada”, Veiga Pereira afirmou que as editoras precisam apoiar essas empresas para que elas continuem suas operações. “Mas, ao mesmo tempo, as editoras têm limites para financiar este momento complicado do mercado”, completou, evidenciando a difícil situação enfrentada pelos editores brasileiros. Dados da consultoria Nielsen, compilados a pedido do Snel e obtidos com exclusividade pela reportagem, mostram que houve redução de 4,11% nas vendas de livros e de 2,95% em faturamento no mês de junho na comparação anual. No acumulado do ano, o mercado livreiro registrou alta de 7,5% em volume e de 11,69% em valor.
Editoras como a Sextante, do presidente do Snel, e a Cortez decidiram suspender as vendas à Cultura. A Planeta chegou a reduzir o fornecimento à livraria, mas afirmou que a situação vem se normalizando. A Cultura parou de honrar os pagamentos de parcelas que haviam sido negociadas entre maio e junho, relativas aos meses anteriores, que já estavam em atraso. Para ter uma ideia do efeito provocado na cadeia pelo atraso no pagamento — ou pelo não pagamento — por parte das grandes livrarias, há editoras que reduziram pela metade o quadro de funcionários e diminuíram o número de lançamentos. Na Geração Editorial, mais de metade dos empregados foi demitida neste ano: de 66 funcionários, ficaram 27. Também houve demissões no Grupo Editorial Record e na Intrínseca. A Sextante diminuiu os lançamentos em 40%, de 13 títulos por mês para 8.
Os cortes de pessoal também ocorrem nas grandes redes. A Cultura demitiu 140 pessoas na sexta-feira dia 20. Procurada, a rede de livrarias informou que o corte ocorreu por uma “necessidade de adequação da empresa à realidade econômica brasileira”. Em nota enviada à reportagem, a empresa cita a recessão no país, o ambiente pré-eleitoral e indicadores que não mostram uma “recuperação consistente” da economia brasileira para detalhar os motivos da demissão em massa. “Se continuarmos a fazer as coisas da mesma maneira, não evoluiremos. Mudanças são necessárias, e estamos preparando nosso futuro”, afirmou a Cultura. As mudanças previstas incluem o fechamento de lojas e forte ampliação das vendas pelos canais digitais.
Descontos vultosos para tentar fisgar o consumidor e a perda do interesse na leitura são outros fatores apontados por especialistas para explicar as dificuldades do setor livreiro. Em 2017, segundo o Snel, os descontos médios praticados pelas livrarias foi de 27,2%. A chegada da Amazon ao Brasil, em 2014, trouxe outra dinâmica para o segmento de livros: vendas on-line e novo patamar de preço para o livro. Nas contas de Bernardo Gurbanov, presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL), nos últimos quatro anos — período que coincide com o desembarque da Amazon no Brasil — pelo menos 20% das livrarias do país fecharam. Os números da Nielsen/Snel mostram que o faturamento das livrarias teria sido em média 7,5% mais alto no primeiro semestre deste ano caso não houvesse a política de descontos.
“Mas nem tudo está perdido”, ponderou Gurbanov. “Apareceram novas livrarias e novos empreendimentos, editoras pequenas com projetos inovadores. Uma nova geração está chegando ao mercado editorial com ideias renovadas.” Apesar da crise que desnorteia os gigantes do mercado livreiro, as editoras independentes, como a Nós e as outras associadas da Casa Paratodxs, nunca desfrutaram de tanto prestígio e prosperidade. O bom momento das independentes se apoia em estratégias ousadas e exitosas de publicação e distribuição de livros, projetos gráficos arrojados, pioneirismo na conquista do mercado virtual, fidelização do público e exploração inteligente da visibilidade proporcionada por festivais literários, como a Flip.
Uma das aliadas das editoras independentes é Elisa Ventura, proprietária da rede de livrarias Blooks, que soma quatro lojas: duas em São Paulo, uma no Rio de Janeiro e uma em Niterói. Sócia da editora Aeroplano, especializada em livros de arte e arquitetura, Elisa conhecia bem as dificuldades enfrentadas por editoras pequenas. “Eu percebia que não conseguíamos chegar ao público interessado em nossos livros. Não adiantava mandar o livro para a Saraiva ou para a Cultura”, disse. Em 2008, Ventura fundou a Blooks, uma livraria onde as apostas das grandes editoras dividem as vitrines com a produção independente. “Quando eu abri a livraria, a cena independente não estava ainda tão forte, mas já havia uma produção incrível, que não tinha muito espaço. Comecei a dar destaque a essas editoras nas lojas.” Simone, da Nós, contou à reportagem que a primeira livraria que se interessou por seu catálogo foi justamente a Blooks. Ventura estima que mais de metade de seu faturamento venha das editoras independentes.
Em maio, Ventura lançou a IndieBlooks, uma loja on-line que vende apenas livros de editoras pequenas. O resultado surpreendeu. “As pessoas entram para comprar um livro e acabam comprando vários, porque descobrem ali um monte de coisas que nunca tinham visto. Essas editoras costumam ficar perdidas em sites como o da Saraiva ou da Amazon. Não é o contexto delas”, afirmou. “As editoras pequenas viram que o mercado estava mudando e começaram a se mexer antes. Inventaram novas formas de publicação e distribuição, como essas feiras todas, que mostram que não precisam tanto das livrarias.”
Nos últimos anos, eventos como a Feira Plana, a Tinta Fresca e a Miolo(s) têm congregado dezenas de editoras independentes, que driblam as livrarias e apresentam seus livros diretamente para o público. Em março, a sexta edição da Feira Plana reuniu 200 editoras e artistas independentes na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. “As feiras representam uma revolução na distribuição dos livros”, afirmou João Varella, fundador da Lote 42, uma editora independente paulistana que investe em projetos gráficos arrojados. “Há uns 15, 20 anos, uma editora era obrigada a distribuir em livraria. Não tinha alternativa. Hoje, a feira propicia o contato direto do consumidor com o produtor, que pode explicar qual é a proposta do livro para quem compra. É uma espécie de consumo à moda antiga.”
A Lote 42 foi fundada em 2012 por Varella e Thiago Blumenthal. Hoje, quem toca os negócios é Varella e Cecilia Arbolave, que se juntou à editora poucos meses depois. Eles contam com a ajuda de quatro funcionários fixos. O primeiro livro, Já matei por menos, de Juliana Cunha, saiu em 2013, mas a loja virtual veio antes. Para ajudar a pagar o boleto da gráfica, a editora nascente colocou o livro em pré-venda na internet com frete grátis. A Lote 42 usa a internet com esperteza: é muito ativa nas redes sociais e cada um dos 32 livros já publicados ganhou um monte de conteúdo extra, como vídeos e sites próprios. Varella disse à reportagem que a Lote 42 prepara um site novo que vai integrar e padronizar todo esse conteúdo extra e facilitar a navegação dos leitores.
Em 2014, os editores da Lote 42 inauguraram a Banca Tatuí, uma banca de jornal transformada em loja de publicações independentes, onde também ocorrem festas e shows. Em junho, a Banca Tatuí arrematou o Prêmio Milton Santos, da Câmara Municipal de São Paulo, que homenageia projetos culturais. Nas próximas semanas, Varella e Arbolave abrirão as portas da Sala Tatuí, um espaço cultural que ocupará o quarto andar de um prédio em frente à banca. A Sala será ocupada por cursos, exibições de filmes, exposições e, é claro, livros. Os negócios vão bem, mas eles não falam em números. “A editora tem crescido e dado lucro. A Sala Tatuí, nossa grande novidade, é consequência de nosso trabalho, de nosso esforço. Tudo segue no azul”, disse Varella. “Pega até um pouco mal falar que tudo vai bem, não é? O meio literário tem uma tendência a ser deprê, todo mundo reclamando, um chororô enorme. Então, eu falo meio baixinho, quase constrangido.”
A editora Hedra também está expandindo. Em maio, Jorge Sallum, fundador da Hedra, e Beatriz Bittencourt, criadora da Feira Plana, inauguraram, em São Paulo, a Casa Plana, uma livraria com 300 metros quadrados e mais de 1.000 títulos no acervo — nacionais e importados, de editoras independentes ou não. Sallum também se uniu às editoras independentes Kalinka, Demônio Negro, Circuito e Azougue. Cada uma delas tem um projeto editorial próprio — a Kalinka publica literatura russa; a Demônio Negro, edições artesanais de poesia e prosa experimental —, mas, agora, contam com a estrutura da Hedra para imprimir e distribuir os livros. “Nós fundamos uma empresa. Seguimos o modelo capitalista mais óbvio. Temos depósito conjunto, escritório conjunto, sistema, tudo que uma empresa tem, e nossa comunicação é diária”, disse Sallum. Juntas, as cinco editoras têm um catálogo robusto, quase 700 títulos, o que facilita as conversas com grandes redes de livrarias.
“A parceria com a Hedra me libera do trabalho comercial e de distribuição para me dedicar ao que gosto de fazer, que é editar livro. Estava ficando impossível lidar com tudo sozinha”, contou Daniela Mountian, da Kalinka. A joint venture já deu resultados: no primeiro semestre, a Kalinka publicou quatro livros, mais do que conseguia lançar em um ano, e planeja botar mais quatro ou cinco títulos no mercado até o final de 2018. As tiragens também tendem a aumentar. Vanderley Mendonça, da Demônio Negro, disse à reportagem que as tiragens de seus livros variavam entre 100 e 200. Agora, ele planeja tiragens de 1.000 a 2 mil exemplares. “A operação não está completamente implantada porque ainda não temos o ritmo editorial que queríamos: publicar um ou dois livros de cada editora por mês”, explicou Sallum. Ele disse a ÉPOCA que a situação difícil das grandes livrarias, que atrasam os pagamentos às editoras, também os afetou.
“Temos procurado negociar e entender, parcelar e propor projetos conjuntos. O problema é sistêmico”, afirmou.
Sônia Machado Jardim, presidente do Grupo Editorial Record, afirma que as dinâmicas de precificação são uma das causas dessa crise sistêmica. Ela lembra que seu pai, Alfredo Machado, fundador da Record, dizia que os livros de giro rápido, os best-sellers, geravam margem de lucro para sustentar outros títulos, de giro mais lento. “Era o que ele chamava de política Robin Hood”, afirmou. Hoje, as livrarias costumam dar descontos altos nos best-sellers, na tentativa de elevar as vendas. “Eles estão abrindo mão da margem que viabilizava a operação no passado”, completou Jardim. Mara Cortez, proprietária da editora Cortez, sustenta que as grandes livrarias não sabem fazer e-commerce e estão arraigadas ao método tradicional de trabalhar no varejo. Ela relatou à reportagem já ter visto livros impressos pela Cortez sendo vendidos ao consumidor por preços mais baixos que os praticados pela própria editora, o que demonstra o desespero das grandes redes na conquista do consumidor on-line.
Aumentar a participação no varejo on-line é uma das principais estratégias da Saraiva para fortalecer a rede e ampliar as margens de lucro. Segundo Jorge Saraiva Neto, presidente da companhia, a Saraiva tem feito parcerias com marketplaces, como o Mercado Livre, para ampliar o alcance dos anúncios de seus produtos. Pelas contas da empresa, 70% das compras no Mercado Livre foram feitas por pessoas que não eram clientes da rede. “A perspectiva é crescer nessa modalidade em 2018, com presença em outras plataformas de grande relevância”, disse.
Há quem defenda a adoção de preço fixo para o livro, como fazem os franceses e alemães, para fortalecer o mercado e proteger editoras e livrarias dos descontos insustentáveis praticados on-line. O preço fixo estabeleceria um valor mínimo a ser pago pelo consumidor e proibiria descontos superiores a 10% até um ano após o lançamento do livro. Marcos da Veiga Pereira, presidente do Snel, afirmou que algum mecanismo de proteção ao mercado é fundamental para o futuro do livro no Brasil, mas evitou dizer se a saída seria o preço prefixado. Marcelo Levy, diretor comercial da Todavia, disse que o preço fixo é uma possibilidade a ser considerada. “Mas não é a única. É preciso reconstruir o mercado. Este é o maior desafio de todos: formar leitores”, frisou.
“O que vou falar pode parecer pedante, mas juro para você que não: a livraria vinha de um modelo preguiçoso. Nós não estávamos acostumados a nos mexer. Abríamos a porta, o cliente entrava, comprava e tudo certo. De um tempo para cá isso mudou. Se a gente não se mexe, não diversifica, a coisa fica feia”, afirmou Ventura, da Blooks. Ela defende o preço fixo do livro. “Uma editora hoje não pode mais depender apenas de canais tradicionais. Temos obrigação de diversificar e ampliar nossas atividades”, disse Mountian, da Kalinka. A crise dramática do mercado editorial não intimidou as editoras e livrarias independentes. Inventivos e destemidos, os pequenos saíram na frente: criaram outras formas de dialogar com o consumidor e de lhe apresentar seus produtos. E não têm medo da internet. São lições que podem ser absorvidas por todos — editoras médias e gigantes, redes de livrarias — e, quem sabe, ajudar o mercado editorial a virar a página da crise.
Crédito: Revista éPoca, matéria de Juan de Sousa Gabriel e Roberta Scrivano