As leis no Brasil oscilam entre o satírico e o sobrenatural. A interpretação delas então…
Há anos circulam nos tribunais brasileiros ações questionando a cobrança de impostos sobre livros vendidos em formato eletrônico. Mais especificamente, enciclopédias e livros vendidos em CD’s. Enquanto as cortes de primeira e segunda instância dão ganho de causa aos editores, o STF derruba essas decisões, reafirmando: se não for em papel, tem que pagar imposto.
Toda a discussão gira em torno de um trecho pontual da Constituição do Brasil. Mais precisamente, o Título VI, “Da Tributação e do Orçamento”, seção II, “DAS LIMITAÇÕES DO PODER DE TRIBUTAR” (a caixa alta é da Constituição), Art. 150, inciso VI, alínea “d”:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(…)
VI – instituir impostos sobre:
(…)
d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.
O argumento dos ministros do Supremo Tribunal Federal, para negar a isenção de impostos a CD’s que contêm livros, tem sido o seguinte: a imunidade concedida na Constituição Federal só fala do papel. A decisão superior mais recente, do ministro Dias Toffoli, cita a jurisprudência do STF sobre o assunto para novamente negar a isenção de impostos a livros em outros formatos que não o impresso.
O português da língua dos tribunais deve ser diferente do português que empregamos nos livros. Não é preciso ser um gênio da língua portuguesa, para verificar que o texto da Constituição não está vinculando o papel aos livros, apenas relacionando os itens imunes à tributação. Como este advogado explica,
Na Constituição lê-se que é vedada instituição de impostos sobre “livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão”. “E” é uma conjunção aditiva. É, pois, como a gramática ensina, uma adição e não uma subordinação. Não há, portanto, pela dicção legal, uma limitação do termo livro ao papel, senão que simplesmente a lei estende a esse específico insumo a imunidade.
Pena que nem todos os juristas possuem esse grau de conhecimento da língua! E que decisões não possam ser tomadas, apenas a partir das regras gramáticais da língua portuguesa. É sempre preciso ir além, convencer os juízes da utilidade da Constituição e do espírito que existe dentro dela.
Os magistrados de primeira e segunda instâncias já dão sinais de convencimento. Mas os ministros do Supremo, quando vão às livrarias, devem sair delas carregando chumaços de papel com letras escritas, ao invés de livros… em Brasília, as livrarias devem ser muito diferentes do resto do país.
O que conceitua um livro? Livro é o conteúdo, ou o suporte? Essa discussão é mais velha que o chão em que pisamos. Alguns magistrados insistem em passar ao largo desse debate.
Se o espírito da Constituição é livrar os livros, jornais e periódicos de impostos, porque os magistrados insistem em adotar decisões que vão contra esse propósito? O legislador de 1988 não poderia sonhar que, um dia, livros poderiam ser feitos sem papel. Apesar disso, sua intenção foi bastante clara: isentar os livros, jornais e periódicos de impostos, desonerar as ferramentas elementares de difusão do conhecimento e da cultura.
Quando o legislador incluiu a expressão “e o papel destinado a sua impressão”, foi para assegurar que o Estado não caísse na tentação fácil (e arbitrária) de taxar o papel para, mesmo indiretamente, burlar a norma constitucional. O legislador redigiu para proteger o livro, não somente o papel em que seria impresso.
O artigo da Constituição não precisa ser reescrito, só precisa ser lido. Eu não sou advogado. Mas me espanta ver o quanto os magistrados se afastam do espírito da nossa Constituição. E do texto dela.
Se ninguém se mexer, teremos consolidada uma situação sui generis no Brasil: você comprará um livro impresso, sem impostos. Ao comprar o mesmo livro, em versão e-book e sem papel, incidirão todas as taxas possíveis e imagináveis. O conteúdo será o mesmo, o eBook vai ter um ISBN como um livro impresso, seguirá as normas técnicas do mesmo jeito… e mesmo com o texto da Constituição afirmando que livros devem ser isentos de impostos, e-books não serão considerados “livros”.
Assim como em tantas outras searas, também aqui a falta de entendimento (ou o pretexto de) da língua portuguesa trava a realização de melhorias e a implementação de justas ações.
Brincadeira… Mas podemos esperar de tudo em um país DEMOCRÁTICO onde o VOTO é OBRIGATÓRIO! oO