Artigo por Ednei Procópio
O artefato livro, pela primeira vez na sua história, teria realmente a possibilidade de não ficar condicionado a uma estrutura socioeconômica que inviabilizasse sua verdadeira livre circulação?
O mercado editorial brasileiro às vezes até parece querer, de certo modo, reverter uma revolução, a digital, ao tentar tornar o livro mais uma vez vinculado a processos e interesses contrários a uma bibliodiversidade rica e plural de obras e autores.
No Brasil temos um catálogo digital, geral, que parece arrastar-se lentamente, feito um jabuti, para chegar somente agora à casa dos primeiros dez mil títulos eletrônicos.
Mas para quem vivenciou a historia dos livros digitais desde o pré-histórico lançamento do primeiro eReader, o Rocket eBook, e aprendeu bastante com a falência da sua criadora, a Nuvomedia, acredito em um futuro para o mundo editorial bem diferente daquele herdado da Era Gutenberg.
Eu chamo este cenário futuro de “A Terceira Onda dos eBooks”.
Na primeira onda de hardwares de leitura, a preocupação dos projetos era a portabilidade e a mobilidade que os equipamentos deveriam prover. Os primeiros equipamentos eram pesados, desengonçados e… caros. A tecnologia ainda engatinhava nos corredores do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e não havia ainda aplicação comercial definida.
De lá pra cá, passamos pelos palmtops, pelos handhelds, Pocket PCs e chegamos aos smartphones, tablets, ultrabooks, etc. Hoje, os equipamentos são móveis, portáteis e… ainda considerados caros, embora bem mais populares.
Só o futuro sabe o que realmente nos aguarda, são muitas as possibilidades. Mas talvez em um inútil exercício de futurologia, vou apostar em uma base instalada de hardwares open source. Hardwares sem patentes, criados por um exército de mãos hábeis de tribos wikis espalhadas pelo globo.
A revolução dos hardwares open source já está em curso. Iniciou-se com um projeto chamado Arduino e só não segue adiante se não houver massa crítica o bastante para levar projetos como este ao próximo estágio: o da produção em escala mooreana.
Exemplo de uma nova abordagem para o desenvolvimento de hardwares de baixo custo é o projeto do Laboratório de Computação da Universidade de Cambridge. Tecnicamente, Raspberry Pi é uma placa de circuito impresso, com 256 MB, do tamanho de um celular, com entradas para áudio e video, cartão de memória e USB. O mais interessante é que o sistema operacional do Raspberry Pi é o GNU/Linux e não Android. O projeto Raspberry Pi, embora traga um hardware bastante rústico, já alcançou a cifra de custo entre US$25 e US$35, e dezenas de milhares de unidades já foram vendidas.
Mas fora o custo de produção, será necessária também uma liderança que supere os desafios já enfrentados por projetos como Dingoo (na área de games), Wikipedia (na de conteúdo) e até o próprio Linux (sistemas operacionais).
Outro desafio neste cenário que aqui aponto será o da integração perfeita da memória com o processador e a tela dos hardwares open source, pois hoje os equipamentos fabricados principalmente na Ásia, ou montados com mão de obra barata na Índia, ainda carecem de design.
De qualquer modo, anotem essa previsão: em breve todos ouvirão sobre o lançamento de um Tablet Reader baseado no conceito Arduino, o primeiro hard pra consumo de mídia desenvolvido com tecnologia open source. Livre de patentes, livre das plataformas fechadas, rico em design e estilo. Que poderá ser fabricado em qualquer país, montado em qualquer fábrica como se fosse um Lego.
O livro eletrônico no formato PDF só resiste porque o seu tamanho de arquivo e a popularidade da extensão permitem a leitura dos livros escaneados. A possibilidade do acesso aos livros raros talvez seja uma das aplicações que o torna ainda imprescindível. Para os livros novos, se o PDF pudesse, porém, ‘caber’ em qualquer tamanho de tela ou hardware, ele não seria um PDF, mas um arquivo HTML.
O ePub 3, por sua vez, ainda deve andar algumas casas antes de se tornar tão, digamos, dispensável quanto a tentativa de uma década de torná-lo um padrão. Independente do consórcio que o desenvolve e da ideologia por trás do conceito, são ótimos, reconheço, mas tecnologia padrão de verdade é aquela que o consumo aceita.
Se levar mais do que o tempo necessário para convencer os consumidores a respeito de uma ideia de mídia, isso quer dizer que ou a tecnologia está sendo empregada fora do seu tempo, a frente de seu tempo, ou ela já perdeu o timing. E em alguns aspectos o PDF venceria, infelizmente, o ePub3, em rapidez e economia de escala em aprendizado e produção. Não que eu torcesse por isso, mas é o que avalio que poderia ocorrer.
E essa é uma das razões que me leva a acreditar que o futuro do livro eletrônico está no passado. Em um simples bloco de notas, em um arquivo em formato TXT, em um conjunto de tags, em uma folha de estilo arrasadora, enfim, em um arquivo que permita texto, som e imagem, livres, independe do hardware ou do software de acesso à leitura dos eBooks. E mesmo que eventualmente não sejam desenvolvidas as famosas aplicações para automatizar todo esse processo, algo que duvido, não tenho dúvidas de que o caminho será
através do HTML.
Mas eu ainda me pergunto, será que o HTML sobreviveria ao monopólio das grandes empresas que tentam ditar as regras da indústria de conteúdo? Como é o caso, por exemplo, da extensão .mobi que poucos conhecem a origem.
Talvez não, pelo menos até que o HTML se torne regra.
Exagero meu?
Não se eu puder mostrar que, dentro de um ePub (e até de um arquivo com a extensão .mobi), existe um HTML. Ou seja, basta você separar um determinado arquivo com a extensão ePub e renomear o tal arquivo para a extensão .ZIP. Depois abrir o arquivo compactado e conferir o que tem lá dentro. Em poucas palavras, um livro em formato HTML.
E se você é daqueles que acha que livro em formato HTML é um site, na boa, vá publicar livros impressos. Ou continue produzindo livros em arquivos cujos formatos são proprietários e no futuro a gente volta a falar neste assunto.
Nesta futura onda, o próximo alvo da indústria de conteúdo serão os metadados. O futuro dos aplicativos e softwares para eBooks nos reserva um mundo de metadados. Sem os dados indexados não existe sequer um Google Books, uma Last.fm ou um IMDb (The Internet Movie Database).
Para o pleno desenvolvimento de qualquer plataforma de livros eletrônicos na Internet é preciso conteúdo. Para manter qualquer plataforma desenvolvida é necessário metadados. Impossível indexar artistas, filmes, discos, músicas, listas de categorias, estilos, sem os metadados. São os metadados que permitem a indexação dos itens do conteúdo digital dentro das bibliotecas pessoais, não importa se elas estão em um iPod, em um Kindle Fire, PSP Vita ou numa TV digital. Aliás, agora, até os programas de TV necessitam dos metadados.
Tudo isso não seria diferente para os livros. A Onix for Books, por exemplo, é uma iniciativa de padronização para o intercâmbio dos dados que permite a indexação dos livros eletrônicos a partir do seu mais importante indexador: o ISBN (International Standard Book Number).
No futuro, porém, de um conjunto de dados bibliográficos básicos nascerá uma espécie de Ficha Catalográfica moderna, em um novo formato chamado RDA (de Resource Description and Access), com uma nova regra de catalogação bem mais rica e eficiente que a convencional, para não dizer antiga, AACR2 (Anglo-American Cataloguing Rules).
Junte ao poder dos metadados a uma tecnologia do tipo RFID (Radio-Frequency IDentification) e até os milhares de livros impressos das estantes físicas em livrarias e bibliotecas públicas podem ganhar vida. Se o Governo ou a iniciativa privada investissem em um projeto neste sentido, teríamos a Internet das coisas voltada a um novo e livre mundo para os livros.
Posso prever uma solução de DRM free para os livros digitais, que nos livre das amarras de empresas da Califórnia pós-Nuvomedia.
Então anotem aí: no futuro será lançada uma plataforma, open, chamada provavelmente eBook Content Server, baseada no conceito de Social DRM.
Sua editora poderá licenciar o eBook Content Server em um servidor Linux, integrado a dobradinha PHP/MySQL, e poderá realizar a instalação ao custo apenas de hospedagem, banda e transmissão de dados padrão de qualquer host numa ‘nuvem’ usando a cloud computing já amplamente difundida.
A plataforma eBook Content Server deverá ser open source, é necessário reforçar, e automaticamente integrada a um gateway de pagamento online que, por sua vez poderá se apoiar a uma plataforma de metadados sobre os livros, autores e leitores ou baseado em quaisquer bancos de dados mundiais.
No futuro, teremos uma rede inteligente que integrará todos os bancos de dados de livros do mundo e o monopólio das indexações mudará de mãos. O usuário será a nova commodity.
Para aniquilar de vez com os atuais e antiquados DRM, o eBook Content Server do futuro poderá também ser integrado às mídias sociais. E utilizará o conceito de mobile-commerce, que será mais comum que entrega de pizza em casa.
Se uma plataforma como esta acima citada não for o centro das atenções em uma futura edição do Congresso Internacional CBL do Livro Digital, significa que os livros eletrônicos ainda não alcançaram sua massa crítica relevante de acesso, consumo e leitura.
Sobre o ombro dos gigantes que aportam no Brasil, vejo um futuro mais livre para o mercado de eBooks. Se minhas previsões sobre a “A Terceira Onda dos eBooks” se mostrarem contrárias, se o livro da era digital for tão preso quanto às ondas que se propagam até as rádios analógicas, cujos donos, os barões da mídia, transformam a comunicação comunitária em rádio pirata, então talvez seja melhor mesmo voltarmos à Era Gutenberg.
Ednei Procópio é editor, especialista em eBooks e autor de “O Livro na Era Digital”
Grata surpresa ver um artigo de Ednei Procópio autor the obra "O livro na era digital". Sou uma entusiasta dos e-readers desde do início e leitora compulsiva de e-books.
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