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Amazon, Bookwire e verdades inconvenientes


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Impossível pensar em livros digitais, no Brasil, sem pensar em Amazon e Bookwire, respectivamente maior vendedora e maior fornecedora de livros digitais. A Bookwire, empresa alemã com filiais no Brasil e outros países, além de “maior” fornecedora é também a “única” para 80 mil livros digitais de mais de 700 editoras brasileiras. As duas empresas, após negociarem por meses na Alemanha, chegaram a um impasse em questões financeiras que levou a Amazon a remover todos os ebooks da Bookwire durante 3 semanas, de 22 de fevereiro a 14 de março. O impacto disso foi imediatamente sentido por aqui, com direito a leitores reclamando do apagão de ebooks na Amazon e editoras, de mãos atadas, limitadas a indicar outras lojas concorrentes da Amazon.

A narrativa padrão desta história traz a Amazon como a vilã terrível, cujas táticas brutais visariam arrancar tudo de seus fornecedores, lembrando, de longe, uma negociação de 2021 entre as editoras brasileiras e a Amazon. Há, porém, algumas diferenças. A principal é que a esmagadora maioria das 700 editoras não negocia os livros digitais individualmente com a Amazon. Para estas editoras trabalharem com a Bookwire, elas são obrigadas a ceder a exclusividade da distribuição do seu conteúdo digital para a Bookwire. Por conta disso, quem negociou com a Amazon foi a Bookwire, sem ingerência ou participação das editoras neste processo.

Outra diferença é que não foram todas, dentre as mais de 700 editoras vinculadas à Bookwire, que ficaram 3 semanas fora da Amazon. Conforme a mesma matéria do Publishnews citada no início, “algumas editoras têm contratos diferentes com a Bookwire, ou negociam os livros digitais diretamente com a Amazon“, entre elas “Companhia das Letras, Record e Rocco”. Destas 3 casas citadas, duas são antigas fundadoras da DLD (Distribuidora de Livros Digitais), junto também de Sextante, Planeta, L&PM e Novo Conceito. Todas elas, aparentemente, mantiveram o privilégio de negociar suas condições diretamente com a Amazon, pois seus ebooks permaneceram online durante todo o apagão na Amazon. Para estas editoras, a vida seguiu normalmente. A DLD deixou de existir em 2017, pois foi absorvida pela Bookwire.

Se comparássemos a Bookwire a um cruzeiro, as editoras da antiga DLD seriam as passageiras da primeira classe; todas as demais, da segunda ou terceira classe.

Um breve disclaimer: a minha editora, Simplíssimo, entre 2010 e 2016 distribuiu seus ebooks diretamente para as lojas e livrarias. Entre 2016 e 2023, foi cliente da Bookwire. Desde abril de 2023, a Simplíssimo voltou a distribuir por conta própria o seu conteúdo e de outros parceiros, também. Graças a essa mudança de curso, os ebooks da própria Simplíssimo não foram afetados pelo impasse entre Amazon e Bookwire.

Feito o disclaimer, a decisão de publicar um texto de opinião criticando outra empresa se deu pelo seguinte raciocínio: um apagão de 80 mil ebooks na principal loja foi bem mais que um problema só da Amazon, só da Bookwire ou suas clientes. Foi um baque enorme, notado de imediato pelos consumidores, sentido por todos. Em pouco mais de 10 anos da venda de livros digitais através das grandes lojas, no Brasil, ainda há muitos olhares atravessados para o livro digital. Ele padece sistematicamente de uma participação pequena nos faturamentos das editoras. E agora, mais recentemente, de polêmicas envolvendo a Bookwire. Os colegas do mercado editorial podem discordar da das conclusões, mas as polêmicas não são “meras coincidências”. Na origem delas está uma forma de fazer negócios muito específica e que é prejudicial para todos.

Em agosto de 2023, quando vieram à tona as tratativas do governo do Estado de SP para eliminar os livros físicos das escolas em prol dos livros digitais, estes livros digitais seriam fornecidos pela Bookwire com dispensa de licitação. Na época, conforme justificaram a Secreteria de Educação de SP e a Bookwire, essa escolha foi por “inviabilidade de competição, já que apenas a Bookwire possui exclusividade de distribuições das obras indicadas. Conforme a própria Bookwire afirmou na época, “Em mais de uma década de atuação no Brasil, o catálogo da Bookwire soma cerca de 700 editoras e 80 mil livros digitais” e tal fornecimento ao governo ocorreria em função de seus serviços especializados “e a exclusividade sobre as obras.

Sem entrar no absurdo que seria trocar livros impressos por digitais em escolas públicas brasileiras, a origem do apagão da Amazon e da polêmica dos livros digitais nas escolas pode ser sintetizada em uma só palavra: exclusividade.

Independentemente da forma como surgem os monopólios privados, eles criam problemas que seriam minimizados, ou nem existiriam, se houvesse competição (ou condições para a existência desta competição). A exclusividade praticada pela Bookwire é uma “porteira fechada”, pela qual o catálogo digital inteiro, de cada uma das mais de 700 editoras, fica sob sua exclusividade. É uma concentração excessiva do acervo digital das editoras brasileiras em uma única empresa. Faz dela a única empresa apta a negociar e fornecer mais de 80 mil produtos no mercado. A partir desse mecanismo, somente a Bookwire tem o poder de decidir para quem, como, quando e em que condições estes produtos serão fornecidos. Essa forma de exclusividade exigida pela Bookwire é a raiz das polêmicas recentes e, continuando assim, será raiz de outras situações atípicas, paradoxais, no futuro.

É impossível existir competição equilibrada em tais condições. Qualquer competidor da Bookwire que quisesse abrir hoje no país, começaria fora do jogo a priori. É uma prática monopolística sem justificativa “técnica”, pois não há qualquer razão desse tipo obrigando que, para uma distribuidora operar, ela precise ter exclusividade sobre o catálogo digital completo de suas clientes.

Uma exclusividade limitada, aplicada somente às obras que a própria editora quisesse oferecer, através da distribuidora A, B ou C, não impediria a competição ou o surgimento de outras distribuidoras competidoras no livro digital. Uma exclusividade pontual sobre apenas algumas obras, sem esta “porteira fechada”, permitiria, por exemplo, que a editora trabalhasse partes diferentes do seu catálogo com distribuidoras diferentes, ou vendesse diretamente os livros digitais para lojas e canais específicos mais identificados com o público e o conteúdo, conforme a necessidade e o interesse de cada editora. Se a Bookwire trabalhasse com uma exclusividade mais “normal”, sem “porteira fechada”, não teria havido polêmica com o governo de SP, porque haveria concorrência suficiente para se fazer uma licitação; os livros digitais ainda sairiam do ar na Amazon, porque foi um problema lá na Alemanha, mas o efeito no Brasil seria irrelevante. As editoras poderiam, simplesmente, remover os livros da Bookwire e colocá-los de volta na Amazon através da distribuidora A, B ou C, ou por conta própria. Teriam voltado na Amazon muito mais rapidamente. Em resumo, existiria mais concorrência para distribuir o livro digital, com todos os benefícios que concorrência e competição permitem a qualquer segmento, de qualquer mercado.

As editoras são especialmente prejudicadas. A falta de ampla concorrência, por si só, encarece os custos da distribuição pagos pela editora, mas há problemas piores. Um exemplo ilustrativo: a venda de ebooks diretamente via redes sociais. Se os leitores descobrem o conteúdo ali, faz total sentido já comprarem ali mesmo, sem ter de sair da rede social e ir na loja A, B ou C. É algo que está nos planos de algumas redes. Porém, as mais de 700 editoras já abriram mão, a priori, da oportunidade de negociar seus próprios termos com as redes e da chance de faturar mais fazendo isso — não só com as redes sociais, mas quaisquer outras lojas e canais de venda que possam se interessar. Afinal, a Bookwire tem exclusividade para fornecer os livros digitais para as redes sociais, ou outras lojas, distribuidoras, etc. Quem quiser negociar e oferecer os livros digitais, deverá procurar a Bookwire, e somente ela, intermediária exclusiva, para ter acesso a estes produtos. É um cenário real, não é hipotético, pois foi exatamente o que aconteceu ano passado na venda dos livros digitais para o governo de SP. Se a editora quiser negociar diretamente com algum canal, no presente ou futuro, digamos, o TikTok, ela precisará pedir autorização da Bookwire para fazer isso. Mesmo que seja com lojas ou parceiros que ainda não trabalhem com a Bookiwre. Veja bem: uma editora, pedindo autorização da distribuidora, para poder negociar seus próprios livros. Esse é o tipo de distorção causada pela exclusividade “porteira fechada”.

Dez anos atrás, quando os ebooks e o conteúdo digital não rendiam nada, era irrelevante se as editoras concedessem poder absoluto sobre o conteúdo digital para apenas uma empresa. O tempo passou, a relevância do conteúdo digital cresceu e fica evidente o quanto essa “estratégia” não foi exatamente sensata para quem produz o conteúdo. E as consequências disso vão repercutindo na sociedade, não só nas editoras.

O livro digital lembra um pouco o ouro do Brasil colonial. Os brasileiros daqueles tempos pagavam um imposto sobre o minério extraído, chamado de Quinto, para a Coroa portuguesa. As editoras, de certa forma, não só pagam um Quinto para uma nova metrópole na Europa, como ainda concedem para a metrópole o poder de decidir o que fazer com o resto do ouro também. Os brasileiros do ciclo do ouro odiavam o Quinto e o apelidaram jocosamente de “O Quinto dos Infernos”…

Os mecanismos da colonização se modernizaram e aperfeiçoaram com a digitalização dos negócios, disfarçaram sua aparência e estão soltos por aí. Quem procurar, encontra. Finalizo com uma postagem (traduzida no Chat GPT) do ex-vice-presidente para audiobooks na Spotify, Nir Zicherman, que descobri no Linkedin através do consultor Carlo Carrenho:

“Em meus anos trabalhando com podcasts e depois audiolivros, aprendi que os monopólios frequentemente se apresentam como os competidores ideais a enfrentar. Existem quatro razões principais para isso:

  • Eles já demonstraram que a indústria é viável e lucrativa
  • Eles se recusam a canibalizar sua própria dominação
  • Eles institucionalizaram suas ineficiências
  • Eles têm mais a perder com os erros, enquanto os desafiantes têm mais a ganhar

Ignore aquelas placas que dizem “Propriedade Privada. Proibida a Entrada”. Enfrente o monopólio. Desafie seus redutos.”

A reflexão completa de Nir Zicherman pode ser lida aqui.

 

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