O universo dos eBooks abriu inúmeras novas possibilidades para os livros. Uma delas é mergulhar de cabeça na interatividade e unir o poder da narrativa com o empowerment do leitor, deixando-o decidir o rumo da história. Isso se dá de várias maneiras: para citar um caso recente, a gigante do mercado automobilístico Audi fechou uma campanha conjunta com a Marvel para posicionar a marca estrategicamente em uma comic digital onde o leitor decide o destino de um herói bem conhecido: o Homem de Ferro. A cada capítulo, há duas opções, e a alternativa que tiver mais votos será a continuidade escolhida.
Outro exemplo, nacional, é a série Spadah, livros projetados especialmente para o ambiente digital, nos quais o leitor leva o personagem por eventos históricos, orientando as decisões a cada capítulo. Por outro lado, jogos eletrônicos apelam cada vez mais para o storytelling típico dos livros para conquistarem os consumidores – como Assassin’s Creed, transformado em livro pela Penguin Books, um exemplo claro de narrativa transmídia.
Assim como Lothar Meggendorfer criou um estilo totalmente diferente para os livros – os pop-up books -, inaugurando uma maneira alternativa de contar histórias e quebrando a linearidade de 400 anos do livro impresso, é possível criar novos formatos para os eBooks. Em uma entrevista exclusiva, Thiago Berzoini, Mestre em Comunicação e Sociedade pela UFJF e líder do Grupo de pesquisa em Arte Sequencial – narrativas interativas e transmidiaticas (IAD/UFJF), explica como os games e os livros digitais podem apresentar convergências, um contribuindo com o universo do outro.
“A possibilidade de agenciamento propocionada pelas novas tecnologias aproxima mais o formato ‘livro-jogo’ com os games. Mas um game é, ainda, uma experiência bem diferente de um eBook com possibilidades de agenciamento por parte do leitor”, afirma. Confira abaixo a entrevista completa.
1. O universo dos ebooks abriu novas possibilidade para escritores e editoras criarem gêneros que vão além da narrativa linear. Qual a importância disso para os leitores e para o futuro do livro, na sua opinião?
É importante perceber que as experimentações com uma narrativa não-linear ocorrem há algum tempo, ainda quando o livro impresso era a única opção, único “formato” disponível. Com o advento dos eBooks o que ocorre é uma maior atenção às experimentações e em alguns casos o acréscimo de elementos que transformam a narrativa em uma obra não-linear e/ou amalgamada com elementos visuais que possuem movimento, como animações, ou ainda elementos sonoros. Porém, ebooks são importantes não somente enquanto suportes de narrativas mas também como um meio mais barato para editoras e escritores (aqueles “independentes”) publicarem sua obra com um menor custo de produção. Certamente a produção de obras com experimentações em narrativas não-linerares e o acesso do público a elas poderá causar mudança por parte dos leitores. A formação de um público que possa interagir com o enredo ou com a obra pode ser uma estratégia para prender a atenção do consumidor e para atrair novos leitores. Consumidores cujo foco são os jogos eletrônicos ou que estão em maior contato com internet e meios digitais podem se sentir atraídos por essa forma de explorar a literatura e gerar um novo nicho. Mas atenção: não penso que os eBooks são a nova geração dos livros impressos. Não creio que aconteça como o VHS que foi substituído pelos DVD’s. Creio que por muitos e muitos anos veremos os livros no formato impresso e os ebooks convivendo em harmonia, são nichos diferentes.
2. No Brasil já existem iniciativas de livros que permitem ao leitor fazer as escolhas do personagem, conduzindo o enredo (como a Spadah). Por outro lado, os games estão evoluindo em direção à narrativa. Existe uma certa convergência entre os livros e os games?
Vivenciamos um tempo de convergências. As mídias convergem e se cruzam com o intuito de arrebatar maior numero de consumidores e nessa era da “Cultura da Convergência” termo utilizado pelo pesquisador Henry Jenkins, seria descuidado pensarmos que uma mídia não exerce influência sobre outra. Não que em outros tempos essa influência não existisse; porém hoje, o acesso à informação parece mais fácil, devido à internet e os suportes que os meios digitais forneceram. E dessa forma um viés foi surgindo: a transmídia. Pontos de acesso em diferentes plataformas, estratégia que vem sendo muito utilizada no exterior pela indústria do cinema e televisão e que já migra para os quadrinhos e games.
A obra citada, Spadah, dos autores Mateus Parreiras e Paola Carvalho, é uma obra bem feita e de ótima qualidade. Existem outros livros que se utilizam do esquema escolhido para as escolhas do personagem para que haja a “condução” do enredo. É a interatividade em voga. Termo muito utilizado e pouco discutido. Justamente por isso, a “interatividade” é termo tão mal utilizado. A estratégia de Spadah possui um nível moderado de agenciamento que é “capacidade gratificante de realizar ações significativas e ver os resultados de nossas decisões e escolhas em ambientes eletrônicos” como esclarece a autora Janet Murray, em seu ótimo livro “Hamlet no Holodeck”.
Porém, foi em 1983 que esse conceito de “livro-jogo” surge, pelas habilidosas mentes de Steve Jackson (não confundir com o cineasta) e Ian Livingstone. Em suas obras da série Fighting Fantasy, o consumidor tem acesso a uma obra ”em parte um romance, com sua história emocionante, e em parte um jogo, com seu elaborado sistema de combate (…) cada página apresenta desafios diferentes e as decisões levarão a diferentes caminhos e batalhas”. A estratégia para a condução do enredo do livro-jogo é a mesma encontrada em Spadah, com a diferença de que, nos livros-jogos há geralmente uma ficha para o leitor-protagonista que incluem pontos de vida, magia, força, entre outros atributos básicos que são herdados do clássico Roleplaying Game (RPG), enquanto o mecanismo adotado em Spadah leva o leitor-usuário a determinado ponto da trama onde toma uma das decisões disponíveis seguindo então para as páginas discriminadas ao final da narração do capítulo. A série Fighting Fantasy, sucesso até hoje e relançada pela Jambo editora, teve seu início no formato impresso. Atualmente, já se encontra em formato de books disponível para tablets, android e iOS. A possibilidade de agenciamento propocionada pelas novas tecnologias aproxima mais o formato “livro-jogo” com os games. Mas um game é, ainda, uma experiência bem diferente de um eBook com possibilidades de agenciamento por parte do leitor.
3. Existe uma crítica aos desenvolvedores de games de que eles se preocupam mais com o design ou jogabilidade do que com o conteúdo narrativo, por uma questão de mercado. No entanto, alguns dos melhores jogos eletrônicos da história (como Legend of Zelda) são basicamente narrativos. Você concorda? Os eBooks poderiam melhorar o storytelling dos games?
Certamente, grandes jogos se afirmaram no hall da fama devido à estrutura narrativa. Nem sempre inovadora, porém atrativa o suficiente. No universo da pesquisa dos games existem dois vieses para que o estudo se concretize: a narratologia e a ludologia. O argumento acima (jogabilidade mais importante que conteúdo) teria uma base fortemente ludologista – linha de pensamento que não crê na necessidade narrativa para análise de um jogo, e sim nas características e estruturas do ludus per se. A linha opositora é a narratologia, termo empregado na literatura mas utilizado no estudo de games, onde os pesquisadores creem na possibilidade de aplicação das teorias narrativas para análise de jogos eletrônicos. Há espaço no mercado para jogos cuja atenção é maior na jogabilidade e não na estrutura e capacidade narrativa e vice-versa. Porém, se atentarmos aos lançamentos de maiores sucessos nos últimos anos a narrativa é um dos pontos centrais do sucesso do jogo. A Série Batman: Arkham Asylum e Arkham City, ou o game Heavy Rain entre tantos outros são exemplos disso. Até mesmo os jogos de luta, como a série Mortal Kombat evoluíram sua estrutura narrativa ao longo dos anos, gerando um complexo cânone de personagens. Percebendo as evoluções dos games – principalmente dos consoles da Nintendo e Microsoft – poderíamos arriscar que a narrativa e a jogabilidade parecem querer encontrar uma zona de harmonia, onde possam conviver sem que uma se destaque mais que a outra. E seria o casamento perfeito em se tratando de jogos eletrônicos. Embora eBooks estejam em um suporte diferente, como já disse anteriormente, eles possuem cada vez mais aspectos relacionados aos jogos eletrônicos. o livro digital não irá, necessariamente, influenciar na melhoria da narrativa em games, mas o acesso dos eBooks por usuários pode permitir um publico mais exigente em relação a estruturas narrativas de jogos (e porque não, de cinema, séries, desenhos, etc). Porém como essa é a era da convergência, inevitavelmente uma mídia influencia outra, de alguma maneira.
4. Outras considerações, fica à vontade para acrescentar mais informações (ou não) sobre o tema.
Por último, gostaria apenas de ir um pouco além quando cruzamos a literatura com os jogos, e sair um pouco dos meios digitais e olharmos para a vida offline. Para refletirmos um pouco sobre a revitalização de jogos de tabuleiro que vem ocorrendo nos últimos anos e que em alguns casos são ótimos exemplos de experimentações narrativas. Jogos como WAR (Grow) ou Monopoly (Hasbro) são grandes clássicos e não podemos dizer que não geram horas de diversão, mas a narrativa nesses jogos fica em segundo plano (e dependendo do grupo de jogadores, até inexiste) todavia no exterior os desenvolvedores tem criado cada vez mais jogos de tabuleiro que estão diretamente ligados com a dinâmica de uma “storyline” colaborativa entre os jogadores…Quando a tecnologia parece nos levar cada vez mais longe em termos de possibilidades, grupos estão voltando sua atenção para as reuniões in loco com amigos. Acho positivo esse retorno, antes que nos percamos de uma vez por todas em nossa individualidade – que fica muito aguçada com as possibilidades da internet. Deixo como exemplo de narrativa fortemente ligada a jogabilidade de um boardgame o jogo “Mice and Mystics” (Plaid Hat Games) onde o jogador é apresentado a uma narrativa a qual ajuda construir enquanto o jogo se desenvolve. Infelizmente, é um jogo importado e no Brasil ainda não temos iniciativas como essa, mas é algo a ser pensado “com carinho” pelos desenvolvedores brasileiros.
Existe um projeto nesse sentido no Brasil. Desenvolvido pela m.gaia studio de games, um dos projetos deles, o Soul Gambler foi recentemente financiado via a plataforma de crowdfunding Kickstarter. Deem uma olhada: http://mothergaia.com.br/playcomics/